PREFÁCIO
Perspectivas na pesquisa em Arte, Mídias e Tecnologia
DOI: 10.35170/ss.ed.9786586283600.pre
Ao longo do século XXI, as mais variadas linguagens artísticas se viram diante da expansão de suas possibilidades por meio de sua difusão em diferentes mídias e formatos, impulsionadas por tecnologias que se reinventam e se confrontam constantemente. Também são perceptíveis as consideráveis mudanças nos modos como a sociedade contemporânea vê e utiliza a arte.
Pode-se dizer ainda que a eclosão e a disseminação global da pandemia de Covid-19 fizeram com que esse processo se acelerasse consideravelmente pela maior necessidade de conexão entre artistas e audiências remotamente – ainda que tais conexões já fossem parte da cena mesmo antes da pandemia. Ao mesmo tempo, processos artísticos colaborativos envolvendo recursos tecnológicos não são incomuns desde meados do século XX, e continuam ocupando diferentes espaços e impactando o cenário criativo.
Mobilizados por estas questões, os grupos de pesquisa ContemporArte (PPGECCO-UFMT/CNPq) e Criação, Análise e Performance Musical com Suporte Computacional (MUSCOM-UFMT-CNPq) uniram esforços e afetos para promover o I Encontro Internacional de Pesquisa em Arte, Mídias e Tecnologias (ConteMidi). Este transcorreu com êxito, totalmente em formato remoto, devido à pandemia da Covid-19, entre os dias 23 e 25 de junho de 2021. Formalmente, o evento foi sediado na Faculdade de Comunicação e Artes da UFMT e, na sua organização e realização, contou com sólido apoio do Departamento de Artes e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO-UFMT).
Durante os três dias do evento uma gama de atividades foi promovida, dentre elas conferências, workshops, mesas-redondas, sessões de comunicações e de apresentações artísticas, contando com uma significativa adesão do público inscrito no evento. Ademais, ressaltando o caráter democrático da programação, todas as conferências, mesas-redondas e sessões de apresentações artísticas foram abertas ao público em geral, com transmissão ao vivo pelo YouTube ou link de reunião do programa Zoom divulgado abertamente aos interessados. Essas atividades estão disponíveis até o presente momento no Canal do PPGECCO-UFMT no YouTube.
O presente e-book resulta da realização do evento, possível por intermédio da parceria entre os grupos ContemporArte e MUSCOM e da concessão de recursos PROAP. Os capítulos aqui reunidos e ampliados são provenientes da conferência de abertura, gentilmente ministrada pelo Prof. Dr. Paulo C. Chagas (Universidade da Califórnia, Riverside), e apresentações nos quatro eixos temáticos do evento: 1) Questões decoloniais e de gênero; 2) Pesquisa artística: criação artística interativa, tecnologias e interdisciplinaridade; 3) Poéticas contemporâneas e suas interfaces com a comunicação, cultura e outras mídias; e 4) Ferramentas e abordagens de análise de obras artísticas.
O capítulo de Chagas “A terceira margem e o virtual: a criatividade artística do pós-humano” é permeado por quatro temáticas – o conto de Guimarães Rosa A terceira margem do rio, o debate sobre o virtual, a pandemia de Covid-19 e a criatividade artística no ambiente virtual e pós-humano. Um de seus argumentos é que a virtualidade se tornou algo fundamental em nossa cultura a partir da década de 1990, com o desenvolvimento da internet, ainda que esse termo remonte à Aristóteles, na Grécia Antiga. Chagas também aplica vetores semióticos de significação no contexto da virtualidade e do pós-humano numa interpretação do conto de Guimarães Rosa, além de tecer comentários analíticos sobre a criação artística no pós-humano, tendo como referência duas obras audiovisuais de sua autoria: Paredes do Tempo VII [Zeit-Wände VII] (2003), em colaboração com Inge Kamps, e Imaginações sonoras [Sound Imaginations] (2020).
Do eixo temático 1, “Arte: questões decoloniais e de gênero” foram incluídos dois capítulos: “Androeurocentrismo na arte-educação: perspectivas feministas e anticoloniais para levar à sala de aula” e “Desobediência e transgressão nas pinturas de João Sebastião da Costa”.
Patricia Kawaguchi lança um olhar investigativo para a prevalência do homem branco europeu como protagonista da grande narrativa da história da arte, ainda hoje pouco diversa na composição de seu elenco, o que pode ser um fator limitante para que esta área de conhecimento mantenha sua relevância na contemporaneidade. A autora apresenta a escola como um espaço privilegiado para a desconstrução dos preconceitos sobre os quais a grande narrativa é tecida. Trazendo à discussão a perspectiva do feminismo anticapitalista, a autora introduz um importante debate para a arte-educação contemporânea.
Por sua vez, Valéria Pereira Moreira e José Serafim Bertoloto se debruçam sobre obras do artista visual mato-grossense João Sebastião da Costa, que mostram corpos subalternizados se manifestando de forma transgressora no contexto do golpe militar brasileiro de 1964. A discussão descrita no texto se dirige para os tópicos da crítica da arte, da carnavalização e da decolonialidade, refletindo sobre como estes trabalhos de arte abordam questões de gênero de maneira subversiva para aquela conjuntura.
Na sequência, foram adicionados três capítulos do eixo temático 2: “Pesquisa Artística no Brasil: um mapeamento”; “Criação e performance na elaboração colaborativa a distância de Rarefações”; e “Autoanálise dos processos criativos de Nácar (2020) e Vólpora (2020)”.
Bibiana Bragagnolo; Leonardo Pellegrini Sanchez; Ana Caroline Santana e Lívia dos Santos delineiam os resultados preliminares do mapeamento da produção em Pesquisa Artística no Brasil, uma área de pesquisa em performance musical que se encontra em processo de expansão e caracterização. Para tanto, foram estabelecidos critérios de busca para a concretização do levantamento dessa produção acadêmica textual no período entre 2010 e 2020 em anais de eventos e periódicos selecionados. O resultado preliminar encontrado demonstra que este gênero de pesquisa é ainda incipiente no país, identificando três autores chave na construção dos discursos e práticas na área.
Micael Antunes, Guilherme Misina e Jônatas Manzolli abordam a criação e performance dentro do contexto dos processos composicionais envolvidos na criação da obra Rarefações (2020), para caixa-clara e eletrônica em tempo real. O capítulo faz alusão à poética do compositor Edgar Varèse e suas considerações sobre o desenvolvimento de instrumentos musicais que permitem o trabalho e exploração de massas sonoras. A obra, composta por Antunes durante a pandemia, contou com a parceria de Misina, percussionista que lhe forneceu importantes informações a respeito de características específicas e diferentes modos de execução do instrumento. A reflexão em questão foi elaborada com a contribuição do compositor Jônatas Manzolli, que é um dos pioneiros no uso de modelos computacionais para criação artística no contexto nacional.
Lucas Quinamo, Lucas Torrez, Lucia Esteves, Giovanna Lelis Airoldi e Fillipe Martins apresentam uma análise dos processos criativos empregados nas duas obras colaborativas realizadas de maneira remota pelos autores, baseada em pressupostos teóricos elaborados pelo musicólogo Nicolas Donin, em conjunto com a equipe de pesquisadores do grupo Analyse des Pratiques Musicales (IRCAM-França). O grupo realizou diferentes interações e aplicou distintas metodologias de colaboração musical que resultaram em duas obras (Nácar e Vólpora) com diferentes configurações, experimentações e processos envolvendo pinturas, improvisos musicais, programação computacional de áudio e vídeo, composição eletroacústica, performance, gravação e mixagem.
Após, do eixo temático 3 são apresentados os capítulos: “Análise das relações entre arte e cidade a partir do espetáculo Passeio Noturno, do grupo de teatro Tibanaré”; “Cultura histórica e a arte quadrinizada: reflexões sobre O Diário de Anne Frank em quadrinhos”; e Banda Larga Cordel: cultura e mediação tecnológica na trajetória de Gilberto Gil.
Airton Nascimento, Naiane Gonçalves e Maristela Carneiro analisam em seu capítulo a relação das intervenções de arte pública com a ressignificação do espaço urbano, identificando paralelos entre ações realizadas e os princípios de cidade viva constantes nos escritos de Jacobs (2000). Nesse contexto, tem-se como foco de observação o caso do espetáculo Passeio Noturno, realizado pelo grupo de teatro Tibanaré no município de Cuiabá/MT em 2015. A intervenção alcança reverberações também no campo do pensar sobre a cidade e o urbano, propiciando experiências e reflexões outras.
Mirielen Machado Rodrigues aborda a adaptação do livro O Diário de Anne Frank (1947) para a linguagem das histórias em quadrinhos, publicado em 2017. Construindo sua análise a partir do conceito de Cultura Histórica de Jörn Rüsen e de conceitos gerais empregados nos estudos de quadrinhos por autores como Nobu Chinen e Scott McCloud, a autora problematiza a linguagem, pensando-a como um espaço público ocupado pelo conhecimento histórico, a fim de avaliar como a Cultura Histórica se manifesta na obra e orienta sua narrativa.
Gabriel Marotti discute em seu capítulo a presença da temática tecnológica na trajetória de Gilberto Gil a partir de um diálogo entre a arte e a política, buscando compreender as subjetividades criadas em torno das tecnologias (na obra do compositor) e de que modo elas são transformadas no trânsito entre o poético e o político. Como recorte, são analisadas três canções onde o compositor aborda a questão da internet, sendo elas: Pela internet (1996), Banda Larga Cordel (2008) e Pela internet 2 (2018).
O volume é encerrado com três capítulos provenientes do eixo temático 4: “Análise computacional de características acústico-vocais em uma canção crossover: um estudo de caso de The Girl in 14G”, “Análise de obras brasileiras com ressonâncias minimalistas: Minimus e Arranjos e Desarranjos”; e “A relação dialética entre Eduardo Lopes e Ben Reimer e uma análise como sugestão de performance da composição Chronos Xb, para bateria e vibrafone, de Roberto Victório”.
A canção crossover The Girl in 14G (2001) é o objeto do capítulo de Helen Bovo Tormina e Tales Botechia. O objetivo deste estudo foi entender o comportamento dos fenômenos acústicos que permeiam as transições de técnicas vocais distintas (speech level, lírico robusto, lírico leve, jazz, belt, high-belt, e sessões mistas) que são empregadas ao longo da obra, por meio de ferramentas de análise computacionais aplicadas à gravação, conhecidas como descritores de áudio. Os descritores extraem dados referentes às qualidades acústicas presentes na obra e, a partir deles, são geradas representações gráficas que auxiliam o entendimento das qualidades acústicas das diferentes técnicas vocais em questão.
Igor Alexandre de Barros Mack e Rita de Cássia Domingues dos Santos em seu capítulo apresentam aspectos composicionais de duas obras brasileiras recentes. Foram selecionadas as composições Minimus, de Helder Alves de Oliveira (2011); e Arranjos e Desarranjos, de César Traldi (2019); para discutir como elas se relacionam com o Minimalismo ou com o Pós-Minimalismo, objeto de estudo dos dois pesquisadores. A classificação dessas obras, nas análises em questão, é diretamente relacionada aos processos composicionais que foram usados para suas criações. Para tanto, eles apresentam algumas características da música minimalista e da pós-minimalista, embasando suas análises em Santos (2019), Potter, Gann e Ap Siôn (2013), dentre outros.
Leandro Amorim e Carlos Stasi exploram no seu texto conexões entre a música popular e a música contemporânea por intermédio de análise conceitual teórica e musical. Embasam seu capítulo em dois autores que cunharam conceitos sob esta perspectiva – Eduardo Lopes (Fourth Stream) e Benjamin Reimer (Confluente) – e, de forma a sugerir uma performance, é feita uma leitura da parte de bateria da obra Chronos Xb, do compositor Roberto Victório. Como resultado, discutem a ideia de que um musicista é capaz de assimilar duas linguagens distintas, no caso música erudita e popular, transformando-as em função de conceitos e gêneros multilinguísticos.
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Este livro se torna uma realidade em virtude da colaboração coletiva, em um momento singular da contemporaneidade, que diretamente afeta a produção científica, cultural e artística. Agradecimentos se tornam vitais: aos recursos PROAP que financiam este livro e à UFMT por sediar o ConteMidi, ainda que remotamente; à Comissão Científica, tanto do evento quanto deste volume, em especial; à Comissão Organizadora do ConteMidi, formada sobretudo por membros dos grupos de pesquisa ContemporArte e MUSCOM; ao apoio da equipe da Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO/UFMT); aos professores, técnicos e alunos do Departamento de Artes da UFMT e do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT); aos diversos colaboradores que viabilizaram a realização do evento e desta publicação.
Que os capítulos sirvam de inspiração para pesquisadores, artistas, estudantes, profissionais e o público em geral interessado nos temas incluídos nesse volume. Estima-se que as pesquisas aqui reunidas sejam estímulo criativo para que lastros de esperança se multipliquem e potencialmente oportunizem outros diálogos, outras virtualidades, outras artes.
Rita de Cássia Domingues dos Santos, Maristela Carneiro e Danilo Rossetti
Cuiabá, agosto de 2021