Pesquisa em Arte, Mídias e Tecnologia: Ampliando Fronteiras
PREFÁCIO
Pesquisa em Arte, Mídias e Tecnologia: ampliando fronteiras
Nas últimas décadas vimos a transformação das linguagens artísticas por meio de da expansão de suas possibilidades técnicas e temáticas, da multiplicação de seus formatos e da potencialização e diversificação de seus modos de difusão em diferentes mídias e, consequentemente, entre diferentes públicos. Movidas pela adesão e subversão de novos princípios e recursos tecnológicos, as linguagens artísticas se reinventam constantemente, propondo novos questionamentos e encarando novos desafios. A sociedade, em contínuo fluxo, responde às novas artes, abraçando, rejeitando e assimilando suas incursões, nem sempre da forma mais esperada ou óbvia.
Tempos pandêmicos intensificaram ainda mais esse processo. Enquanto já se observava uma crescente migração ou ao menos a ampliação da conectividade do mundo da arte com os espaços on-line, as restrições impostas pela covid-19 modificaram severamente a circulação de pessoas e materiais artísticos. As aglomerações para a realização de apresentações e exposições foram repensadas, e inegavelmente vimos o crescimento de uma concentração cada vez maior das vivências artísticas no espaço dito virtual.
Não que o uso dos meios de alta tecnologia fosse completamente estranho a artistas e mediadores do mundo da arte. Desde o século XX, quando as primeiras tecnologias digitais e a internet se convencionalizaram, as artes buscam tenazmente desenhar relações com os horizontes expandidos do virtual, embora nem sempre com sucesso, em razão de limitações técnicas ou conjunturais.
Com o propósito de contribuir para a superação destes entraves, os grupos de pesquisa ContemporArte (PPGECCOUFMT/CNPq) e Criação, Análise e Performance Musical com Suporte Computacional (MUSCOM-UFMT-CNPq) promoveram o I Encontro Internacional de Pesquisa em Arte, Mídias e Tecnologias (ConteMidi), desenvolvido em formato remoto entre os dias 23 e 25 de junho de 2021, contando com o suporte do Departamento de Artes da UFMT e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO-UFMT).
O evento contou com uma adesão substancial de público e participantes, nas diversas atividades promovidas pelos GPs. Durante os três dias de evento foram promovidas conferências, workshops, mesas-redondas, comunicações e apresentações artísticas. Isso foi possível porque todas as sessões e apresentações foram abertas ao público em geral, em vista do caráter democrático pensado para o evento, com transmissões ao vivo pelo YouTube sendo amplamente divulgadas a uma vasta gama de interessados, material este ainda disponível no canal do PPGECCO-UFMT na referida plataforma. O encontro resultou também na publicação de um e-book, ainda em 2021, produto da parceria entre o ContemporArte e o MUSCOM e da concessão de recursos via PROAP e Fundação Uniselva.
Neste momento novamente nos reunimos para a publicação de um segundo volume, sobretudo fruto das comunicações realizadas durante o evento e das potentes parcerias que buscam continuamente discutir as relações entre as artes, as mídias e as tecnologias. Há que se alargar as fronteiras dessas esferas, para que nesse momento, em que acompanhamos um certo retorno ao mundo que “deixamos” em 2020, possamos tensionar e ampliar tudo o que aprendemos durante esse período, em prol da democratização do conhecimento e da fruição artística, em suas mais diversas linguagens e possibilidades.
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Abrimos este volume com trabalhos referentes ao eixo temático 1, foram incluídos quatro capítulos: “Projetos Donas da Rua”, “Por trás das cortinas: O racismo nas óperas”, “As Mulheres do Argan e a Luta por autonomia e igualdade: as políticas de uma experiência entre tradições e empoderamento” e “Arte Mato-Grossense: um Olhar Para a Decolonialidade do Corpo”.
No primeiro artigo, Michele Leite de Barros e Maristela Carneiro tratam sobre o empoderamento feminino na contemporaneidade por meio do projeto “Donas da Rua”, criado em 2016 pela Mauricio de Sousa Produções. Neste texto, são apresentadas informações que demonstram a relevância desta iniciativa que imprime por meio da linguagem escrita, visual e digital histórias em que as mulheres são protagonistas de sua própria trajetória.
Na sequência, Maidi Leonice Dickmann e Bibiana Bragagnolo apresentam um estudo exploratório-descritivo que reflete sobre o racismo estrutural nas práticas musicais, com foco na invisibilidade de cantores/as negros/as nas produções operísticas no Brasil. No decorrer do capítulo, as autoras apresentam dados que indicam que, embora algumas mudanças tenham ocorrido neste meio musical, tornando-a um pouco mais próxima da diversidade étnica e racial brasileira, ainda é possível constatar certo conservadorismo em um meio ainda marcado por padrões culturais de uma sociedade patriarcal eurocentrada e de relações de poder hegemônicas e capitalistas.
Seguindo a perspectiva de empoderamento feminino, o capítulo a seguir é sobre a pesquisa interdisciplinar em andamento, realizada por Gisela Gusmão de Oliveira. Neste capítulo, a autora expõe suas observações a partir das experiências vividas no Marrocos, no projeto da Cooperativa Eco Hands, tendo como norte o método qualitativo de Minayo (2012). Gisela elucida em seu texto os resultados positivos desta expedição, já que as mulheres envolvidas no projeto, embora reprimidas pelos homens e resistentes às mudanças em uma cultura que as oprime, permitiram-se construir um espaço de reflexão sobre suas realidades.
Os autores José Henrique Monteiro da Fonseca e José Serafim Bertoloto refletem no capítulo seguinte sobre a decolonialidade do corpo, a partir da análise de algumas obras de arte contemporâneas mato-grossenses. Para eles, as expressões artísticas atuais podem ser uma forte aliada para as reflexões em relação à pluralidade corpórea que nos rodeia e que em contrapartida, também coloca em questão os discursos de uma sociedade que se pretende homogênea.
A seguir, estão dispostos quatro capítulos relacionados ao eixo temático 2: “Criação mediada tecnologicamente: o fast fourier transform”, “Asa de Baleia”, “Apontamentos sobre a importância dos instrumentos de percussão ao desenvolvimento da música eletroacústica mista” e “Reflexões sobre o processo criativo em literatura: um relato de experiência a partir de Passatempoemas”.
Charles Neimog e Rodolfo Coelho de Souza abordam em seu texto sobre as propriedades do Fast Fourier Transform (FFT), buscando colaborar nas composições musicais eletroacústicas. Além disso, os autores apresentam os resultados parciais da implementação do FFT no OpenMusic, com o objetivo de facilitar o uso destes recursos por estudantes/artistas que não dominem a linguagem de programação.
No próximo capítulo, as escritoras Angela María Villalobos, Geysiane Aparecida de Andrade, Maria Williane da Rocha Souto e Juliana Maffeis, compartilham a experiência de criar um poema coletivo durante trinta dias ininterruptos. A ideia surgiu a partir das mudanças e angústias causadas pela pandemia de covid-19, em um desafio de elaboração de escrita à distância.
No artigo a seguir, Vinicius Siqueira Baldaia apresenta em seu artigo dados referentes à exploração sonora dos instrumentos de percussão como material composicional na música contemporânea. O autor aborda transformações musicais que emergiram no final do século XIX e início do século XX, em que compositores passaram a explorar com maior vivacidade os elementos timbrísticos e rítmicos, ampliando as possibilidades de criação.
Na sequência, Carolina Zuppo Abed compartilha o processo de elaboração do livro Passatempoemas. Primeiramente, a autora elucida a importância dos escritores fazerem a exposição dos processos criativos da escrita, posteriormente fundamenta os princípios de criação em rede, e por fim descreve brevemente os assuntos abordados em seu livro e aponta os caminhos que sugeriram suas escolhas criativas.
Os capítulos “Chico Mello e o Pós-Minimalismo: a postopera Fate at Eight”, “Fotografia e escrita criativa: configurações para um trabalho teórico-prático” e “Homo pri.mato a intermídia como máquina literária [arte-semente] e práticas cotidianas estéticas” são referentes ao eixo temático 3.
No primeiro capítulo deste eixo, Rita de Cássia Domingues dos Santos lança seu olhar investigativo em busca da identificação do uso do Pós-Minimalismo em postópera, a partir da análise da obra Fate at Eight de Chico Mello. A autora usou como principal ferramenta de análise a Teoria da Paródia de Hutcheon (2000), a fim de discutir o uso da intertextualidade na obra em questão, elemento este muito presente nas composições Pós-Minimalistas.
A seguir, Luís Roberto Amabile descreve sobre o processo criativo artístico a partir da relação entre fotografia e literatura e apresenta algumas abordagens que ficaram famosas na relação direta entre estas formas artísticas. Neste texto, o estudo científico foge das regras tradicionais, e adota os princípios da Escrita Criativa, que segundo o autor é uma área em ascensão nas academias.
Eriton Vinícius Gonzaga de Melo, Sandra Malagón e Maristela Carneiro descrevem sobre o processo intermídia proposto a partir de experiências estéticas cotidianas. Como cerne provocativo da experiência docente, os/as autores/as propuseram um ensaio fotográfico que ocorreu em uma praça do Jardim das Américas em Cuiabá-MT, com o objetivo de analisar os diálogos entre a comunidade acadêmica mato-grossense e a civil e política, resultando na performance Homo Pri.Mato.
Por fim, são apresentados dois capítulos relacionados ao eixo 4: “Análise musical assistida por computador de Let me die before i wake” e “Níveis de pertinência na análise e criação: a amplitude dos objetos-enunciados musicais”.
Tales Botechia apresenta a análise da obra “Let me die before I wake”, de Sciarrino, adotando os recursos da análise computacional no viés de 3 metodologias: extração de dados simbólicos da partitura, percepção de fenômenos sonoros e a extração de dados do sinal digital. Neste artigo, o autor verifica o desenvolvimento da obra em nível espectral, relacionando-o às alterações genéticas preconizadas pelo compositor.
No último capítulo, Gustavo Bonin apresenta um modo de operacionalizar a expansão dos objetos que atravessam as práticas de análise e de criação na contemporaneidade, tendo como base os estudos de semiótica de Jacques Fontanille (2008 e 2015). O autor apresenta reflexões pertinentes em relação a materialização da vida acadêmica e artística, colaborando na discussão do intercâmbio entre análise e criação a partir do viés da musicologia.
O texto do décimo quarto capítulo “Processos Criativos na Leitura e Escrita de Poesia”, de autoria de Divanize Carbonieri, é fruto da conferência de encerramento do I ConteMidi. A autora se propõe, inicialmente, a analisar alguns conceitos e definições relacionados à poesia e as teorizações de Eagleton e Goldstein balizam sua discussão. Em um segundo momento, a autora realiza um exame de processos criativos que norteiam o seu fazer poético, analisando poemas de sua autoria e de outros escritores, servindo como exemplificação para a sua argumentação.
Encerramos este volume com o capítulo “Meu Brasil Brasileiro: o imaginário fundacional na literatura e na música brasileira”, que é resultado de um dos workshops do I ConteMidi, ministradas por Eduardo Mahon e Helvio Moraes. Trata-se de um texto poético ensaísta, fruto do workshop por eles ministrado e com vistas à oralidade. Neste trabalho, os autores compartilham as possíveis relações entre obras literárias e obras emblemáticas do cancioneiro nacional, instigando o leitor a perceber a riqueza cultural, social, política e artística das músicas brasileiras.
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Este livro se torna uma realidade novamente em virtude da colaboração coletiva, do desejo de democratizar o conhecimento científico e a fruição artística. Mais uma vez, agradecemos aos recursos que financiam este livro e à UFMT por sediar remotamente a realização do I ConteMidi; à Comissão Científica do evento e deste volume; à Comissão Organizadora do evento, formada em especial por membros dos grupos de pesquisa ContemporArte e MUSCOM; ao apoio da equipe do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO/UFMT); aos docentes, técnicos e alunos do Departamento de Artes da UFMT e do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT); às diversas colaborações que viabilizaram a realização do evento e de ambos os volumes que, ao reunir textos dos quatro eixos e conferências, permitem que nos debrucemos sobre as possibilidade de ampliação das fronteiras entre as mais diversas artes, mídias e tecnologias.
Bibiana Bragagnolo
Eduardo Santos
Maristela Carneiro
Simone Miranda